quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

A sorte dos portugueses

[D]evíamos ver esta crise como a melhor oportunidade que temos para reformar a nossa economia. Afinal, se não fosse a crise, conseguiria o Governo (tentar) levar a cabo a maior reforma da Administração Pública numa geração? Se não fosse a crise, não seria a contestação às reformas do Estado muitíssimo maior? Se não fosse a crise, será que aceitaríamos tantos sacrifícios em prol de alegadas reformas?

Álvaro Santos Pereira*, Os Mitos da Economia Portuguesa, Lisboa, 2007, pg 57

É típico do português, depois de um acidente em que partiu um braço, esfacelou o nariz e queimou uma perna, dizer "Que sorte! Podia ter sido pior."
Eu não concordo com A. S. Pereira: esta crise não é uma benção, e seria mais fácil aceitar as reformas se não estivéssemos em crise, pois os dispensados da função pública teriam mais facilidade em encontrar trabalho no sector privado e sofreriam menos.

E quanto aos sacrifícios, aceitá-los-íamos se não víssemos que eles só atingem as classes média e baixa, enquanto os dirigentes políticos, das grandes empresas e da banca continuam a viver como se não houvesse crise.

*Nota: A. S. Pereira é também o autor do blog Desmitos.

4 comentários:

Fernando Vasconcelos disse...

Por acaso não é típico dos portugueses. Já Voltaire escreveu um livro sobre este tipo de raciocinio chamado "candide et la critique de l´optimisme" em que essencialmente acontecem ao "heroi" o Candide todas as desgraças possíveis e imagináveis. Após cada uma delas Candide encontra sempre uma razão para achar que aquilo que aconteceu até acabou por ser bom e remata "Tout est aux mieux dans le meilleur des mondes possibles" ou tudo está pelo melhor no melhor dos mundos possíveis ... Este deve ser inspirado nesse conto :-)

Gi disse...

Tem toda a razão, Fernando. O Candide deve ter sido a única obra de Voltaire que li.
A propósito, está uma versão para teatro em palco no Maria Matos.

Alvaro Santos Pereira disse...

Cara Gi,
Muito obrigado pelo seu comentário e pelo seu post sobre o meu livro.
A minha intenção não foi ser como o Candide, um optimista desmedido. Em relação à crise o que eu queria alertar era que esta chegaria, mesmo que não houvesse o euro, nem o Pacto de Estabilidade, nem sequer as irresponsabilidades orçamentais dos finais dos anos 90. Com efeito, tanto a competição da China e dos países do Leste como o esgotamento do modelo de salários baixos e produtividade reduzida já estavam presentes na nossa economia. Neste sentido, iriamos sempre passar por uma crise estrutural, por uma crise de adaptação. A crise actual só acelerou as coisas. Para bem ou para o mal. E eu acho que foi para o bem. Mesmo assim, deixe-me dizer-lhe que fico contente por discordar comigo. É do debate das ideias que se avança.
Cumprimentos
Alvaro

Gi disse...

Obrigada, Álvaro, pelo seu comentário.

Eu só pontualmente discordo de si; duma maneira geral estou de acordo e achei alguns capítulos particularmente interessantes, como aquele sobre a possível independência da Madeira.

E quanto ao optimismo, também penso que poderíamos sair razoavelmente bem desta crise se fossem tomadas as medidas correctas; só que me parece que essas medidas não estão a ser tomadas.

Ou não se fazem reformas, ou se finge que se fazem, ou as que se fazem não são apropriadas.

Volte sempre.