quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Don Carlo no São Carlos

Durante os próximos dez anos não espero voltar ao São Carlos. Mais ainda se todos os governos forem persististindo na política de redução de subsídios, reduzindo proporcionalmente a já fraca possibilidade de se contratarem elencos decentes.
De facto, ou se aumentam de alguma forma as verbas para a produção de espectáculos ou mais vale cortá-las de vez e esquecer a ópera em Portugal.

Fui ontem à única récita do Don Carlo a que me era possível assistir. Quem esteve na estreia e noutras récitas pareceu ter ficado contente, e lá fiz uns malabarismos que me permitiram ir a Lisboa durante a semana.

A encenações meio parvas já estou habituada, e esta, de Stephen Langridge, não era das mais parvas, se passarmos sobre coisas como, desde logo, os anacronismos criados pela passagem da acção do século dezasseis para o século vinte, pôr em primeiro plano um caixote de vidro que tanto fazia de altar como de túmulo de Carlos V ou de banco de jardim, obrigar Elisabete Matos a cantar diversas vezes de joelhos e vestido comprido, tendo de levantar-se com óbvia dificuldade, ou não acender o fogo a propósito, na cena do auto-de-fé, e no último acto acendê-lo a despropósito.

Adiante. Nos figurinos havia de tudo, desde vestidos de festa para a rainha e suas aias passearem no jardim até um príncipe vestido com a roupinha suplente de um dos músicos da orquestra (acho eu). Mas também já vi pior.

Quanto ao coro e à orquestra em si mesmos, nada contra, gostei de os ouvir. Só que ainda não percebi se há alguma coisa errada com a construção do teatro, sei lá, o fosso da orquestra muito avançado, por exemplo, ou se o facto de a orquestra repetidamente abafar os solistas se deve a má direcção daquela ou a falta de qualidade destes.

Vamos então aos solistas. Começaram todos mal, pessimamente, embora alguns melhorassem pela noite dentro. Admito que o tenor Giancarlo Monsalve, que adoeceu na primeira récita, ainda não esteja recuperado: assim se explica que tenha estado rouco, incapaz de agudos, incapaz fosse do que fosse. Já o barítono Dimitri Platanias tem uma voz bastante bonita - quando se ouve - e fez um Posa aceitável dentro das suas capacidades cénicas. A mezzo-soprano albanesa Enkelejda Shkosa foi uma Eboli desastrosa na canção do véu do primeiro acto, fraca no segundo, atacando mal O don fatale no terceiro mas acabando melhor do que começara.
O baixo Enrico Iori foi o melhor da noite, a voz era boa, bem trabalhada e ouvia-se. Podia ter sido mais expressivo - afinal, o rei Filippo tem algumas das árias mais bonitas da ópera - mas não esteve mal. No confronto com o Grande Inquisidor, Ayk Martirossian, faltou contraste nas vozes, pelo que se pode culpar o casting. A propósito, nunca vi tanta falta de empatia como entre este príncipe e esta rainha.

E a rainha, Elisabete Matos, a razão principal que me levou ao S. Carlos desta vez? Que fique claro: eu simpatizo muito com ela, fico contente quando tem sucesso e orgulhosa quando a plateia do Met se levanta para a aplaudir. Mas não gosto da voz dela, e ontem percebi porquê,

Elisabete tem uma maneira de cantar antiga - ela própria o confirma na entrevista que concedeu a Jorge Rodrigues para o programa de sala. É essa forma de cantar, é essa voz particular que cativou os americanos - una voce all'antica, diz ela, que lhes faz lembrar Birgit Nilsson ou Kirsten Flagstad, e que ao meu ouvido, se calhar educado por outras vozes, não encanta, nem é sequer agradável.

Finalmente, só uma menção para Joana Seara, que já vi cantar bem e ontem não correspondeu ao esperado no pequeno papel de Tebaldo.

10 comentários:

mfc disse...

Eles lembrar-se-ão de tudo onde possam cortar... bem além donde a nossa imaginação nos possa levar!

beijo de mulata disse...

Valha-me Deus e Santa Cecília! Eu confesso que depois da Salomé nunca mais fui a mesma... Nunca mais fui ao S. Carlos sem tremer um bocadinho. Passei a ter dúvidas se aquilo que eu apelidava de "gosto pela ópera" não estaria a raiar o masoquismo... Deixei de olhar o programa. Passei a ir só aos Mozarts e às óperas difíceis de estragar completamente.

E este ano estava quase capaz de voltar. Mas pronto, já vi que não, que mais vale repetir o que fiz na outra temporada: ir a Viena tirar os ouvidos de misérias.

(um) beijo de mulata

Mário R. Gonçalves disse...

Eu já desconfiava, Gi. Pareceu-me tipo "não vi e não gostei". Mas de qualquer modo não podia ir por estar de pé engessado.

Além de tudo indicar uma encenação a tender para o asqueroso, também não vou NADA com a voz da Matos. Tem um vibrato descomunal e feio. Não é articulada, não se percebe nada do texto. E nem sequer os agudos são cristalinos, tendem demasiado para o "grito".

O que não concordo NADA, mesmo NADA, é que a compare à grande Kirsten Flagstad. ò Gi, por favor, não cometa esse crime!

FanaticoUm disse...

Cara récita é diferente em todas as óperas, não apenas nesta. Teve azar com alguns dos cantores. Eu, na que assisti, o tenor era outro. Mas os restantes eram os mesmos e estiverem globalmente bem ou muito bem. Não discuto o gosto pela voz de Elisabete Matos, eu gosto. Mas na récita que assisti o Dimitri Platanias foi excelente e os dois baixos, sobretudo o que catou o Filipe II foi muito bom. E a Eboli também não esteve nada mal.

Em mantenho-me fiel (há muitos anos) à nossa única casa de ópera nacional. Se cortarem mais e deixarmos de ter ópera, para além do destino dos nossos músicos que fazem o que podem e que, como nós, são totalmente alheios à situação actual, se deixarmos de ter ópera, dizia, onde a poderemos ver?
Na Gulbenkian no Met Live? Sim, mas não é a mesma coisa. A última Anna Bolena que tanto gostámos teve o som altissimo, não reflectindo o que se passou no Met.
No Porto (é uma hipótese, mas são muito poucas).
No estrangeiro, é a melhor hipótese, mas a partir do próximo ano não sei se, mesmo os que se esforçam por ir, poderão continuar a fazê-lo.
Enfim, o panorama é sombrio, mas espero que o São Carlos nos continue a oferecer meia dúzia de óperas por temporada (e se forem como este Don Carli, na minha opinião, não será mau!).
Desculpe este grande texto.
Aceite os meus melhores cumprimentos

Gi disse...

Mfc, eles têm de cortar - como disse outro dia o secretário de Estado, Que parte de "não há dinheiro" é que você não percebe?
Mas o resultado é desastroso e inexorável.

Beijo de mulata, ir a Viena parece-me uma excelente solução.

Mário, como escrevi no post, há encenações piores. Quanto à comparação com a Flagstad, é a Elisabete que conta que lha fizeram na América.

FanaticoUm, é possível que os lugares onde estivemos sentados (eu numa frisa, o FanaticoUm bastante mais perto do palco) também fizessem diferença. Eu gostei da voz do Platanias, só que muitas vezes não o conseguia ouvir sobre a orquestra.
Tenho muita pena de não gostar mais do que passa no S. Carlos, porque obviamente o MetLive é enlatado, ou seja uma espécie de canal mezzo em écrã gigante experimentado colectivamente. Gosto muito, mas não é totalmente real - não sei se me consigo explicar.

FanaticoUm disse...

Cara Gi,
Concordo inteiramente com o que diz do Met Live, embora também goste muito e vá a todas as que posso.
Cumprimentos

George Sand disse...

Estive para ir...pelos vistos não perdi nada.
Mas lá contiuamos, a não abandonar o S. Carlos...melor dias virão

Gi disse...

George Sand, pode ser, mas não vejo como, com os orçamentos a descer e as próprias empresas patrocinadoras com maiores dificuldades.

Paulo disse...

Obviamente, discordo :)
Não assisti à tua récita, mas assisti a várias outras. E como diz o FanaticoUm, todas elas são diferentes. E eu gostei de todas.
Mas vamos por partes.

Na Ópera de Viena nem sempre tiramos os ouvidos de miséria. A única garantia é a de termos uma das melhores orquestras do Mundo à nossa frente. Ouvi-a há poucos anos sublime no "Don Carlo" (também em quatro actos), com cantores cujos nomes propositadamente esqueci, à excepção de Johan Botha, que já conhecia mas de quem não gostei. A encenação era de época, mas totalmente desprovida de interesse. Só o auto-da-fé foi verdadeiramente deslumbrante.
Voltei a ouvir a orquestra em "Crepúsculo dos Deuses", mais magnífica ainda sob a batuta de Franz Welser-Möst. Era noite de estreia da nova produção e o vídeo não mostra a pateada à equipa da encenação e a Eva Johansson, que esteve sempre muito fraquinha (então na cena final mal se ouvia - a Brünnhilde do São Carlos foi muito superior).

O Teatro de São Carlos tem vários problemas de acústica. Dependendo do sítio onde os cantores se encontram no palco, a voz é ouvida com maior ou menor volume na sala, mais ou menos brilho, etc. Do mesmo modo, o som chega-nos diferente consoante o sítio onde estamos sentados. Pude confirmá-lo nas últimas semanas. Num dos lugares em que estive (plateia, junto às frisas) senti uma reverberância em certos momentos que não tinha ouvido nos outros dias; e algumas vozes, por vezes, pareciam-me abafadas.

Quanto a Elisabete Matos, como acontece em relação a todos os outros cantores, gosta-se ou não se gosta. Ela tem uma voz e uma técnica à antiga, de facto, o que actualmente é muito raro. As pessoas desabituaram-se de ouvir vozes como a dela. Não se trata de comparar Matos a Flagstad ou a Nilsson, mas basta ouvir a Minnie que ela cantou no Met para perceber por que é que o público sentiu na voz dela as qualidades de soprano dramático das grandes wagnerianas e se levantou como uma onda e ficou a aplaudi-la de pé. Aliás, é para o Met que Elisabete Matos volta já a seguir para uma única récita como Abigaille, porventura um papel mais adequado à sua voz, actualmente, que Elisabetta di Valois.

Gi disse...

Paulo, obviamente :-)
Em relação à Ópera de Viena, nunca fui mas espero ir um dia. E suponho que quem tem récitas praticamente todos os dias de vez em quando lá terá dias menos bons ;-)

O S. Carlos, sendo um teatro tão pequeno não deveria ser tão complicado! Só estive uma vez no Met, nos lugares de cima, e a memória que tenho é que se ouvia lindamente. Até é possível que a voz de Elisabete Matos se valorize naquele teatro mais do que neste. No entanto, aqui também foi muito aplaudida.