Tão bom ir descobrindo Wagner nas transmissões do Met para a Gulbenkian, Wagner que eu tinha deixado lá atrás, no meu passado, quando possivelmente era demasiado cedo para gostar de uma música tão cheia de tensão e de lirismo, praticamente sem árias fáceis à italiana mas com frases melódicas cujo significado eu então não entendia. Siegfried é uma espécie de compêndio do wagnerismo, não? A sabatina entre o Caminhante e Mime (que contém pelo menos uma observação epistemológica fundamental: Tinhas três perguntas a fazer-me e só perguntaste coisas que já sabias, diz o Caminhante) é em primeiro lugar uma revisão da história anterior ilustrada com os leitmotive correspondentes.
Siegfried foi transmitida no sábado passado e temia-se que o tenor Jay Hunter Morris, substituto do substituto do cantor inicialmente designado, não estivesse à altura, embora já tivesse cantado o papel na San Francisco Opera e o Met não fosse com certeza buscar um incompetente. Ora Morris pode ter algumas falhas (a nota falhada no fim do primeiro acto) mas compôs um belíssimo Siegfried, tanto vocal como cenicamente, e o Siegfried é um herói com defeitos, um rapazola com uma educação muito deficiente no isolamento da floresta, a quem se perdoa a má-criação, como Wotan o faz, pela inocência e pelo amor que inspira. Morris, ainda por cima, tem uma bela figura, uns olhos lindos e límpidos como convém, e coragem e empenho não lhe faltam. Chegou ao terceiro acto cansadíssimo (já no primeiro intervalo confessou estar muito cansado) e isso notou-se até nos pedidos de apoio ao maestro e à orquestra. Fico com muita vontade de o rever em Fevereiro no Götterdämmerung.
O outro tenor, Gerhard Siegler, que fez o anão Mime, foi fantástico: tem uma voz impecável, e cenicamente foi brilhante, um Mime buffo cheio de tiques, que provavelmente passam despercebidos no palco mas nos primeiros planos da transmissão - ou do DVD que está prometido - são necessariamente valorizados. Mime é um personagem do qual inicialmente nos apiedamos, mas que depois, quando nos é permitido, como a Siegfried, ouvir os seus verdadeiros pensamentos, merece toda a repugnância que este lhe dedica.
Um encenador europeu talvez se lembrasse de recriar a relação entre os dois no quadro da pedofilia, justificando ainda mais o herói, sem sequer trair o libretto, mas Robert Lepage preferiu mais uma vez, apesar da tecnologia, uma encenação bastante clássica, fácil de perceber, com bom ritmo e movimento dos actores, excepto o final um bocadinho tonto.
Voltando aos cantores: absolutamente perfeito Bryn Terfel, em voz e em atitude, como Caminhante/Wotan, o deus imperfeito; muito bem os baixos Eric Owens e Hans Peter König nos pequenos papéis de Alberich e Fafner e a mezzo-soprano Patricia Bardon no de Erda. O passarinho foi cantado por Mojca Erdmann, a Zerlina da semana passada.
Debbie Voigt foi mais uma vez Brünnhilde. Pode já não conseguir sustentar as notas, como diz o Paulo, mas gostei de a ouvir, e para mim fez uma (ex) valquíria muito credível e agradável, gerindo bem as suas capacidades.
A orquestra foi divina, e confirmo que gosto muito da direcção viva de Fabio Luisi. A música do despertar de Brünnhilde comoveu-me de tão bonita. A máquina funcionou bem, e apesar do tratamento do som na transmissão ainda foi possível ouvi-la estalar e grunhir, o que ao vivo deve ser complicado; pergunto-me também às vezes como conseguem os cantores andar por ali sem escorregar. Os efeitos visuais de Pedro Pires (de origem portuguesa) foram interessantes. Fraco, mesmo, foi o dragão, completamente incapaz de assustar quem quer que fosse, quanto mais o herói.
A escolha de clips desta produção ainda não é muita; fica aqui a canção de Notung.
Siegfried foi transmitida no sábado passado e temia-se que o tenor Jay Hunter Morris, substituto do substituto do cantor inicialmente designado, não estivesse à altura, embora já tivesse cantado o papel na San Francisco Opera e o Met não fosse com certeza buscar um incompetente. Ora Morris pode ter algumas falhas (a nota falhada no fim do primeiro acto) mas compôs um belíssimo Siegfried, tanto vocal como cenicamente, e o Siegfried é um herói com defeitos, um rapazola com uma educação muito deficiente no isolamento da floresta, a quem se perdoa a má-criação, como Wotan o faz, pela inocência e pelo amor que inspira. Morris, ainda por cima, tem uma bela figura, uns olhos lindos e límpidos como convém, e coragem e empenho não lhe faltam. Chegou ao terceiro acto cansadíssimo (já no primeiro intervalo confessou estar muito cansado) e isso notou-se até nos pedidos de apoio ao maestro e à orquestra. Fico com muita vontade de o rever em Fevereiro no Götterdämmerung.
O outro tenor, Gerhard Siegler, que fez o anão Mime, foi fantástico: tem uma voz impecável, e cenicamente foi brilhante, um Mime buffo cheio de tiques, que provavelmente passam despercebidos no palco mas nos primeiros planos da transmissão - ou do DVD que está prometido - são necessariamente valorizados. Mime é um personagem do qual inicialmente nos apiedamos, mas que depois, quando nos é permitido, como a Siegfried, ouvir os seus verdadeiros pensamentos, merece toda a repugnância que este lhe dedica.
Um encenador europeu talvez se lembrasse de recriar a relação entre os dois no quadro da pedofilia, justificando ainda mais o herói, sem sequer trair o libretto, mas Robert Lepage preferiu mais uma vez, apesar da tecnologia, uma encenação bastante clássica, fácil de perceber, com bom ritmo e movimento dos actores, excepto o final um bocadinho tonto.
Voltando aos cantores: absolutamente perfeito Bryn Terfel, em voz e em atitude, como Caminhante/Wotan, o deus imperfeito; muito bem os baixos Eric Owens e Hans Peter König nos pequenos papéis de Alberich e Fafner e a mezzo-soprano Patricia Bardon no de Erda. O passarinho foi cantado por Mojca Erdmann, a Zerlina da semana passada.
Debbie Voigt foi mais uma vez Brünnhilde. Pode já não conseguir sustentar as notas, como diz o Paulo, mas gostei de a ouvir, e para mim fez uma (ex) valquíria muito credível e agradável, gerindo bem as suas capacidades.
A orquestra foi divina, e confirmo que gosto muito da direcção viva de Fabio Luisi. A música do despertar de Brünnhilde comoveu-me de tão bonita. A máquina funcionou bem, e apesar do tratamento do som na transmissão ainda foi possível ouvi-la estalar e grunhir, o que ao vivo deve ser complicado; pergunto-me também às vezes como conseguem os cantores andar por ali sem escorregar. Os efeitos visuais de Pedro Pires (de origem portuguesa) foram interessantes. Fraco, mesmo, foi o dragão, completamente incapaz de assustar quem quer que fosse, quanto mais o herói.
A escolha de clips desta produção ainda não é muita; fica aqui a canção de Notung.
8 comentários:
Belíssima descrição Gi, muito obrigado!
Está com uns largos passos de avanço sobre mim, Gi - ainda não "descobri" esse Wagner e agora já é tarde. Se calhar tenho pena. Não consigo encontrar no Anel dos Nibelungos música tão cheia de tensão e de lirismo nem suporto o tipo de canto wagneriano, excepto o dos lieder, dos Mestres Cantores e do Navio Fantasma.
Aprendi à minha custa a gostar de música "clássica", mas acho que para apreciar Wagner precisaria de ter sido ensinado.
Parabéns, portanto, pela seu "upgrade" wagneriano. Disfrute.
(Ah, sim, o Fabio Luisi é incompetente)
Foi um "Siegfried" muito entusiasmante, sem dúvida. Principalmente graças a Terfel, Siegel e Luisi, mas também à surpresa que foi o próprio Jay Hunter Morris.
"Siegfried" pode facilmente tornar-se uma ópera maçadora com um maestro chato. Não foi de todo o caso, como muito bem diz o Joaquim:
Luisi, sempre amb la complicitat de l’orquestra, em va fer fruir com poques vegades, de tot aquest teixit temàtic, amb un so luxós, cuidat, de variades i riques sonoritats i sempre en constant evolució, mai morós, ni amb temps allargassats per fer un discurs manierista que acabés per avorrir-nos de tanta recerca de la bellesa.
Luisi foi brilhante no modo como nos deu todos os Leitmotive, em todas as suas variações, com o devido relevo mas sem os desintegrar do tecido orquestral. Magnífico.
Vi o seu piano no Castelo de Hohenschwangau!
FanaticoUm, eu é que agradeço o elogio.
Mario, não acredito que seja demasiado tarde para descobrir Wagner, embora acredite que possa precisar de ajuda nesse caminho, e é fundamental que ouça excelentes intérpretes.
Porque acha o Luisi incompetente?
Paulo, concordo contigo e com o Joaquim - e tu conheces esta música muito melhor do que eu.
Mfc, não conheço o Hohenschwangau mas estive no Neuschwanstein.
Gi,
Ouvi Fabio Luisi duas vezes, em Graz e em Geneve; tem um estilo de condução demasiado italiano (não como Chailly, mais como Mutti), que costuma arruinar obras germânicas. Foi um desastre completo com Mozart, parecia um amador de província, não conseguia sequer sincronia no ataque das cordas. Claro que não o ouvi com Wagner.
Mário, eu nunca o ouvi ao vivo. O que gostei nestas duas transmissões foi se calhar essa energia "italiana" que não arrasta os tempos: tanto o Don Giovanni como o Siegfried, se forem demasiado lentos, podem ficar uma seca.
E se calhar está a dar-se melhor com a orquestra do Met do que as suíças...
Do "Don Giovanni" não posso falar. Não o ouvi. Mas neste "Siegfried" foi extraordinário. Penso que não tinha ouvido antes Luisi a dirigir.
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