segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Don Carlo em Munique

Esta viagem estava programada desde que em Outubro a Bayerische Staatsoper me atribuiu bilhetes para a récita de 19 de Janeiro do Don Carlo de Verdi (uma qualquer!, pedira eu) com um elenco encabeçado por Jonas Kaufmann, e que incluía René Pape, Anja Harteros e Mariusz Kwiecien. Quando Kaufmann cancelou os últimos recitais de 2011 confesso que tremi... mas quem faltou à chamada foi Kwiecien, substituído por Boaz Daniel.

Achei o Nationaltheater enorme e um tanto confuso, com uma mistura de estilos: a fachada e a sala neoclássicos, o resto moderno. O público, muito bem vestido e educado, poucas tosses e longos aplausos.


A encenação de Jürgen Rose foi banal; responsável também pelos cenários, luzes e figurinos, fez opções sem qualquer originalidade: cenário minimalista e claustrofóbico, crucifixo gigante encostado a uma parede do princípio ao fim, roupas sem coerência temporal, muitos trench-coats, uma espécie de procissão de semana santa sevilhana na cena do auto-de-fé, e o toque ousado dos condenados nus em palco. Mas Rose anda nisto há tanto tempo que é possível que já não consiga inovar-se. E a fogueira foi realmente acesa.

Sobre a concepção dos personagens, de referir apenas que o príncipe foi historicamente informado, ou seja, frágil, doentio, com quedas e desmaios; o marquês de Posa com óculos fez-me lembrar o príncipe Pierre Bezukhov da série War and Peace dos anos 70, e a pobre Eboli foi mais uma vez iludida com uma beltà que não lhe concederam. A paixão entre Carlo e Elisabetta podia ter sido mais desgarradora, sobretudo no acto final, em vez de os intérpretes cantarem cada um para seu lado encostados às paredes.

Os intérpretes, esses, foram realmente fantásticos. Jonas Kaufmann (Carlo), acerca de cuja voz já li críticas ácidas (pequena, artificialmente escurecida, etc), tem na verdade uma voz belíssima, aveludada, com gradações de cor, expressiva, perfeitamente projectada nos fortes e com pianíssimos celestiais. Anja Harteros (Elisabetta di Valois) tem uma voz grande, muito bonita, com os agudos perfeitos, que vale particularmente a pena ver ao vivo num teatro. René Pape (Filippo) é extraordinário, uma voz de baixo sem esforço em qualquer dos extremos da tessitura, linda e doce.
Anna Smirnova (Eboli), que vimos na transmissão do Don Carlo do Met há pouco mais de um ano, achei muito melhor ao vivo, embora não ao nível dos outros três. Também longe dos outros o barítono Boaz Daniel, que achei um bocadinho arrastado (falta de fôlego? cansaço?) mas empenhado.
O Grande Inquisidor foi, como no Met, Eric Halfvarson, em muito boa voz, dramaticamente exagerado na conversa com o rei mas excelente de autoridade na cena da revolta popular.
Nenhuma falha a apontar aos cantores nos papéis menores. A orquestra muito bem, sob a direcção do maestro Asher Fisch, sem arrastar os tempos, mas dando espaço ao que devia ser enfatizado.

(München, Janeiro 2012)

Foi um serão belíssimo, e tive a oportunidade, já de regresso a casa, de assistir à transmissão directa online da récita de ontem. Já está, aos bocadinhos, no Youtube, mas certo é que, como diz o Fernando Vasconcelos, ao vivo é outra coisa.

Nota em 28/01/12: os videos foram retirados a pedido da Bayerische Staatsoper. Espero que isso signifique que haverá um DVD.

7 comentários:

Mário R. Gonçalves disse...

Gostava bem de ouvir a Anja Harteros... além do Kaufmann, claro. Imagino que só por eles já valia.

A Harteros está a afirmar-se como grande voz para os anos (20)10. Só tem a Netrebko a esse nível...

Como achou Munique, Gi? Confesso que nunca lá fui.

Paulo disse...

Bem gostava de ter lá estado. Valeu-me a transmissão online.
Gostei muito do Jonas, de Pape e de Harteros. Smirnova melhorou para o final, tal como tinha melhorado no Met, embora sem fascinar, e achei Daniel fraco (já tivera essa impressão dele ao vivo em Viena).

FanaticoUm disse...

A inveja é algo de muito feio, mas confesso que a sinto por não ter podido assistir ao vivo a este Don Carlo. Também me contentei pela transmissão "on line", que não tem qualquer semelhança com a vivência "in vivo". Obrigado pelo seu relato.
Na transmissão que vi, Harteros, Pape e Kaufmann foram os maiores, mas gostei de toda a récita. Que bom para si, Gi, ter tido essa possibilidade.
Para mim a Bayerische Oper, que conheço bem, é um dos melhores teatros de ópera da Alemanha.

Gi disse...

Mário, se tiver uma oportunidade de ouvir a Harteros ao vivo, não perca.

Não conheço mais que o centro de Munique, mas é uma cidade simpática, com diversas coisas para ver - igrejas, o relógio animado na Rathaus, museus, o mercado, avenidas neoclássicas com lojas caras, armazéns com áreas dedicadas à música que me deixam tonta. Pareceu-me, ao atravessá-los de autocarro, que os bairros residenciais também são agradáveis. E os bávaros são muito prestáveis.

Gi disse...

Paulo, é como dizes, Kaufmann-Harteros-Pape são um grande trio, e ao vivo ainda mais impressionantes.

FanaticoUm, é bom podermos partilhar um bocadinho as nossas impressões com outras pessoas que têm os mesmos gostos, não é? :-)

mfc disse...

Sente-se o entusiasmo e empolgamento como descreves as mais pequenas coisas.
Fico feliz por ti.
Beijinhos.

Gi disse...

Mfc, eu adoro as coisas bonitas :-) Bjs.